segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Meio quilo de sarcasmo, uma pitada de ultraviolência, dois toques de Beethoven e 1 tonelada de realidade





Pode um livro escrito em 1962 parecer que foi escrito na semana passada? É possível em um mesmo personagem se misturar o teen spirit “deprê” de Kurt Cobain, o desejo de matar de um George W. Bush, o Sarcasmo do Bart Simpson e a ingenuidade da Amélie Poulain? Essa mistura excêntrica e bizarra é o que define Alex, um adolescente de uma futurística Londres, onde se passa um dos maiores clássicos literários do século passado: Laranja Mecânica.
Anthony Burguess, autor do livro, criou um personagem simplesmente fantástico. Durante cento e poucas paginas Alex narra a sua história de jovem classe media problemático, amante das artes eruditas e com gosto bastante peculiar por coisas abomináveis a sociedade como estupros, drogas e bebidas esquisitas como o coquetel Molovo. Tudo isso com um sarcasmo digno de um psicopata americano ao mesmo tempo com uma simplicidade tão comum que a história poderia ser contada por qualquer jovem de classe média.
Burguess anteviu uma sociedade onde a violência virou algo banal. A arte da violência pela violência, sem motivo aparente é a temática do livro. Burguess deve ter tido uma visão do meu tio tomando uma cerveja, escutando Fagner e assistindo uma luta de vale tudo pela TV a cabo para aliviar as tensões da vida de médico.
A história se passa em Londres, mas poderia se passar em Tóquio, de repente em São Paulo ou até aqui pertinho de casa. Numa cidade sem políticas publicas a juventude onde formar gangues e bater em velhinhos é diversão. Ir ali estuprar tchuthucas é o Maximo. Aulas para que? Se o bom mesmo é ir junto com os amigos marcar brigas de gangues e praticar a boa e velha ultraviolência.
A narrativa é impecável. Em momento nenhum você desgruda os olhos do livro. Às vezes, se tem a impressão que o próprio Alex está aos seus ouvidos a te contar. Você se irrita, fica aterrorizado, tem pena, lembra de uma amigo de escola, tudo isso com história toda contada em Nadsat, um a gíria inventada por Burguess, uma espécie de neo idioma que assim como os criados na internet por adolescentes, reforçam a questão do ser diferente, a identidade jovem de simplesmente não querer ser igual aos adultos por auto- afirmação.
Essa idéia de escrever em gírias pode causar estranheza e desconforto a principio ao leitores. Depois você acaba associando e até curtindo o modo de falar do futuro antevisto por Alex. Em outros momentos, ela funciona meio que como um atenuador eufemístico das cenas de violência, como nesta descrição de um estupro: "Então ele agarrou com força a devotchka, que ainda estava krikikrikando num compasso quatro-por-quatro muito horrorshow, prendendo os rukas dela por trás, enquanto eu rasgava isto e aquilo, os outros fazendo hahaha ainda, e grudis muito horrorshow exibindo então seus glazis rosa, Ó, meus irmãos, enquanto eu me desvestia e me preparava para o mergulho." A versão lida é composta de um glossário atrás do livro, mas o legal mesmo é quebrar a “gulliver” e viajar junto com autor numa história muito “horrorshow” onde miguxos e miguxinhas vão se chocar com esse encontro de pura realidade.
De uma hora a outra se tem uma virada sensacional da história, de um jeito fantástico que você vai ter que ler para descobrir, o vilão passa a ser vitima. Vitima de uma sociedade que tenta simplificar ao Maximo coisas complexas desvirtuando do seu contexto, como a própria violência mesmo. Vitima de amigos, que estão com você só nos momentos bons, mas nos ruins te renegam três vezes antes do nascer do sol. Vitima de pais que não estão nem aí para vida dos filhos, que acham que dar um trocado aos fins de semana é participar do processo de construção da identidade. E o principal: vitima de si mesmo. Da solidão, problemas psicológicos, do medo, da covardia. Laranja mecânica é um livro sobretudo de filosofia que te faz repensar coisas simples que te provoca e te estiga a pensar que o dualismo não existe. O bem e o mal partem de tudo de um mesmo ponto de vista que não podem ser descontextualizados simplesmente.
Laranja mecânica soa como um soco no estomago da hipocrisia. Um chute no meio do saco de uma sociedade que critica a violência, mas usa dela como meio atenuador e repressor. Ao invés de educar cidadãos e fazê-los repensar os transformam em meninos paranóicos não prontos para voltar ao convívio. É a critica de um sistema prisional onde o mais forte reina e o Estado Bizarramente tenta transformar esses fortes em moças.
Isso pode soar tão bizarro quanto uma laranja mecânica, mas o mérito do Burguess foi criar um personagem humano. Alex não fez o caminho mágico de Compostela. Tampouco, estuda numa escola de magia. Não namora nem um vampiro quiçá um lobisomem. Alex é de carne e osso como eu e você. Mora numa cidade que poderia ter as descrições de Recife. Você poderia conviver com ele em um colégio partcular. Ou encontrá-lo com seus amigos no meio de uma torcida organizada. Se você o escutasse contando a história iria lembrar de um primo, talvez um amigo ou quem sabe você mesmo.

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