domingo, 22 de novembro de 2009

Um caleidoscópio de visões sobre o “instante-já”


LITERATURA//Clarice

Publicado nos anos 70, “Água Viva”, de Clarice Lispector, se mantém atual e inovador

Por Iohana Ruiz


Publicada em 1973, a obra “Água Viva”, cujo gênero – romance, ficção ou a junção dos dois, não se mostra definido à primeira vista, devido à complexidade da narrativa psicológica e introspectiva da personagem e autora do livro, Clarice Lispector, é um convite ao problema do “Ser”. Diga-se de passagem, a literatura proposta por esta inquieta e ousada escritora, é, ao se propor simples analogia sensorial, uma espécie de cozinheiro de “mão cheia”, ainda inseguro sobre o prato mais delicioso e peculiar que irá produzir dentro de instantes. A insegurança tem origem no desvendar compulsivo do misterioso conceito do “instante-já”, que permeia todo o discurso literário.

Na tentativa incessante de desvendar o “ser” de cada coisa – utilizando a expressão da pintura, da música e da literatura para definir o momento presente, a ucraniana deixa clara a problematização fundamental de seu projeto literário: os limites da personalidade e a identificação com os limites da linguagem. A convergência entre essas duas questões aparecem na obra através da reflexão sobre a Escrita Automática, pensada conforme a teoria surrealista.

O livro que mais parece um caderno de anotações, espécie de diário sobre vida e o que nos move a viver, revela um conteúdo contemporâneo e temporal. Faz parte da atualidade os textos que buscam desvendar os mistérios da existência e do eu interior. Com abordagem inovadora e única, a autora, vanguardista por opção, quase não se utiliza de cenas de ação para construir e personificar sua história, que é pessoal.

Com grande carga metalingüística, “Água Viva” não se mostra como uma narrativa dinâmica. Isso porque é muito mais enriquecedor para a escritora levantar dúvidas consigo mesma e repassar aos leitores os sinuosos caminhos do desfazer dos acontecimentos - sem abdicar da dor que cada sensação proporciona, do que propriamente fazer uso de realidades concretas. Isso, na verdade, é inconcebível para Clarice. Ela, que de tão complexa, pode provocar nervosismo aos que a lêem, por causa do ritmo lento e inconstante das palavras, prefere adentrar na experiência dos sentidos.

Não existe enredo em “Água Viva”. Os temas se repetem e as imagens são vistas como que em um caleidoscópio - multifacetadas. A circularidade está presente desde a primeira até a última frase do livro: não há começo, meio ou fim. Trata-se de um texto para ser muito mais vivido do que lido, no qual a sensibilidade aflora constantemente, em um fluir de experiências vivenciadas de forma intensa. Daí o nome Água e viva = água viva, água pulsante, líquido fluido que quer ser e sentir a universalidade.

Os diálogos densos da autora com o leitor criam um ambiente de desautomatização da linguagem, ao decompor e desmontar o próprio sistema de escrita, para tentar se libertar da coisa “morna” do viver. Por meio de neologismos e da busca pelo sentido perfeito - equilíbrio entre forma e conteúdo, consegue-se perceber claramente a crise psicológica aliada à angústia metafísica da personagem. A particularidade narrativa não-linear de Água Viva parece estreitar os elos durante o ato da leitura, uma vez que a fragmentação das ideias permite maior liberdade. Consideração relevante é que a própria Clarice deixa vazios nas entrelinhas. E isso, ao que parece, é feito com um propósito, o de criar instrumentos que impulsionam a consciência imaginativa.

(...) “Porque ninguém me prende mais. Continuo com capacidade de raciocínio (...) mas agora quero o plasma – quero me alimentar diretamente da placenta (...) O próximo instante é feito por mim¿ ou se faz sozinho¿ Fazemo-lo juntos com a respiração. E com uma desenvoltura de toureiro na arena.” Assim, a autora transcende e mostra os procedimentos capazes de libertar o sujeito dos limites impostos pela consciência. Porém, até isso é paradoxal, trazendo à tona a idéia de controle do pensamento. “Quem for capaz de parar de raciocinar – o que é terrivelmente difícil – que me acompanhe. Vim te escrever. Quer dizer: Ser.”

Nenhum comentário:

Postar um comentário